Benfica

Foi Di María quem levou Messi ao trono

É o raio do noodle que se escapa entre os dentes do garfo. É melhor do que dois pauzinhos, mas ainda assim se falham garfadas desesperadas, porque não há talher que consiga fechar a boca de espanto e, por isso, se entrega àquele arranhar estridente que se mete debaixo da pele, sobe pela espinha – C5, C4, C3… – e arrepia qualquer alma.

Escorregadio junto à linha. Escorregadio pelo meio. Fideo, corpo de um só fio, tão incontrolável que não parece lutar contra o vento, passa por ele tal como passa, sem se molhar, entre as gotas da chuva, salta quase sem tocar no chão, flutua, ao mesmo tempo que deixa em fúria aparentes clones de Hércules.

Há algo nele que não faz sentido algum. Flutua, não corre, não caminha. Desafia o mundo de uma só vez, é capaz de tal atrevimento. Quase se desmonta quando passa um defesa, hoje talvez menos carniceiros ainda assim duros e implacáveis, todavia, reúne-se com as peças soltas novamente mais à frente, cheio da inconsciência de si e da consciência de super-herói. Ou, pelo menos, de que sempre foi alguém muito especial.

O pé esquerdo, que não foi ensinado, sempre soube demais. O corpo de esparguete al dente permite-lhe ser contorcionista e o passe ou remate de letra tornou-se uma das suas assinaturas em campo. Tem mais.

Chegou à Luz menino tímido. Irreverente em campo. Falava com a bola, as suas jogadas tinham a força das palavras. Só tínhamos de entender a linguagem, mas era fácil. Depois de descodificada tornava-se universal. Havia coragem escondida por trás do silêncio, a afirmação de que iria aparecer sempre que precisassem dele. Nunca deixaria ninguém ficar mal. Ou só. Até já o tinha mostrado, dois anos antes, em Pequim, quando picou a bola por cima do guarda-redes nigeriano Ambruse Vanzekin e entregou o ouro olímpico, de bandeja, à sua Argentina.

Disse adeus quando Portugal se tornou pequeno. Voltou, e não precisava, quando já se sentia a encolher com a idade. Nós todos chegamos a um ponto que mirramos, é a lei da vida. Talvez os super-heróis também envelheçam. Pelo menos, acontece aos humanos muito especiais. Como ele!

Sorriu em Madrid, sobretudo em 2014, porque a Décima é muito sua. Chorou em Manchester. Encantou em Paris, carregando às costas uma equipa cheia de craques, e em Turim. Teve de lutar com as críticas que lhe chegavam das Pampas, sobretudo depois da Copa América de 2016, quando o chamaram de frágil, de fraco, depois de se lesionar e perder o resto da competição. Como se as lesões fossem escolha, como se um músculo que falha apague a vontade, a alma de quem nunca se escondeu. Foi, pela primeira vez, um anjo caído, todavia teve a eternidade inteira para se levantar. Cinco anos que lhe pareceram essa eternidade.

No Maracanã, em 2021, a Argentina esperava pela redenção de Messi, porém foi Ángelito quem apareceu para acabar com um jejum de 28 anos sem títulos. Mais uma vez a picar a bola por cima do guarda-redes, agora Ederson. Com a Pulga em campo, só à quinta tentativa houve festa junto ao Obelisco, com o caneco da Copa América a passar de mão em mão. Apesar de ainda não se saber, aquele golo tinha desbloqueado toda uma geração.

Em Wembley, na Finalíssima de 2022 com a Itália, correu como se tivesse ainda uma vintena de anos e marcou como se ainda estivesse a driblar pela cancha do Rosario. Sorriu quando se apercebeu que o futebol lhe tinha dado uma segunda oportunidade.

No Qatar, Scaloni trocou os olhos aos franceses. Meteu-o à esquerda. Sofreu o penálti, marcou o segundo para ajustar mais vezes contas com a história e, quando já não aguentava mais, saiu em lágrimas. O corpo, frágil antes do torneio, cedera finalmente. Os gauleses aproveitaram, reagiram, mas depois daquele primeiro fôlego o tapete vermelho já tinha sido deixado estendido para Messi e para a sua coroação como melhor de todos os tempos. Tinha sido Di María a carregar o rolo e a deixá-lo a jeito. Ainda que depois tenha sido preciso ser eficaz dos 11 metros.

Di María já estava no banco, os deuses do futebol não tinham querido que continuasse em campo, contribuindo para continuar a ser um dos mais subvalorizados da história. Mesmo que depois de Messi e Maradona, o terceiro lugar do pódio seja dele e, provavelmente, por mais uma pequena eternidade. Uma à sua medida.

Saiu rapaz, voltou homem e campeão. Grandioso, mas humilde e apaixonado. Voltou com amor, porque não se esqueceu, porque sabia a porta que aquele clube lhe tinha aberto. Quis agradecer com mais dribles, cruzamentos e golos, e entregou o que pôde. E o que pôde foi suor e ainda centelhas de talento.

Já não era o mesmo, mas ainda tinha magia. Não era só alcunha. Amigo do presidente, ainda se impôs a Schmidt quando o substituiu, depois com Lage jogou sempre que estava bem. E mesmo ainda uma ou outra vez em que não estava. Discutiu-se o que não defendia e se o que dava ao ataque compensava. Tendo em conta o contexto das demais opções, talvez tenha havido aí algum desrespeito. Não porque não se deva ser crítico, mas talvez porque se tenha de ser mais justo.

Di María foi um dos melhores de sempre a passar por Portugal e ainda veio com qualidade para jogar e ser um dos melhores do Benfica. Mesmo que tenha passado tempo a mais no chão e tomado decisões que não lhe fazem justiça. Foram fragilidades da idade.

Aos 37 anos, nos Estados Unidos, com a sua equipa reduzida a dez, recuou uns anos no tempo para dar um pouco mais. Um último fôlego. É a sua têmpera. A de um grande campeão. E não precisa de títulos por cá que o justifiquem.

Não é só o Benfica que se despede de um grande. É uma pobre liga como a nossa, um país inteiro. Até os adversários deveriam fazer-lhe uma vénia. Vamos ter muitas saudades do jogador, mas também do homem que se desfez em lágrimas depois de dar tudo. Da sua coragem para enfrentar o mundo se necessário sozinho. Da sua arte. Daquele pé esquerdo que conhecia todos os segredos da bola. Obrigado, Di María! Os Ángels são eternos!

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